23/05/2016
Driblando o garrafão.
São Paulo, entra ano e sai ano, torna-se um terroir plausível para o vinho fino tinto de mesa.
É de todos sabido que para a grande maioria dos tomadores tupiniquins de vinho nacional, vinho bom é o vinho de sabor docinho e suave.
Para mim, esse tipo de vinho é um suco roxo que sai do garrafão e que só serve para manchar definitivamente a toalha de mesa.
São Roque, infelizmente, ganhou a pecha da terra do “vinho ruim”, feito com as uvas americanas (labruscas: Isabel, Bordô etc), dentre os apreciadores dos vinhos finos tintos, brancos, claretes e roses, feitos com as uvas europeias (viníferas: Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon, Merlot, Shiraz etc).
Contudo, São Roque, que contava com 150 vinícolas e tinha uma Festa do Vinho em seu calendário com esse tipo de vinho ruim, tem hoje cerca de 13 empresas sobreviventes, sendo que a celebração do vinho vem depois daquela respectiva à colheita da alcachofra, que acontece em outubro.
Em Jundiaí, outro município de vinicultura, resistem quatro vinícolas, todas de vinho ruim, produzindo marcas conhecidas como Chapinha e San Tomé, além de alguns corajosos produtores artesanais.
Mas essa realidade vem mudando, ano a ano.
Ao contrário do que muita gente acredita, a origem do vinho no Brasil não é e nunca foi gaúcha. É paulista, iniciada por Braz Cuba na Capitania de São Vicente. Depois, colonos portugueses iniciaram o plantio das vinhas em Taubaté, que tinha clima mais favorável.
Somente no século 19, após a devastação dos vinhedos europeus, sobretudo os franceses, pela filoxera, os imigrantes italianos introduziram no Brasil as uvas americanas, que são praticamente imunes à peste, e que se adaptaram melhor na região que as europeias, sabendo eles que estas uvas gerariam um vinho menor diante das vinhas europeias, vinho este utilizado praticamente para o consumo familiar e local.
Saiu daí o chamado “vinho de mesa”, açucarado, com gosto de suco de uva, mas que domina 75% do consumo nacional, gerando renda ao produtor e ao vinicultor, mas que mistura, mais das vezes, aguardente, açúcar e corante, o que garante ao infeliz que o tomar, embriaguez fácil e ressaca difícil de curar.
Mas que ninguém pense que no Rio Grande do Sul somente se produz os vinhos finos de mesa, pois que lá se encontram também os produtores dos rótulos Chalise e Sangue de Boi, gerando com esse tipo de vinho, ruim, receita suficiente para as muitas vinícolas gaúchas, garantindo lucros, enquanto paralelamente ganham prestígio e apoio da mídia com seus vinhos refinados.
A produção de vinhos no Brasil, até muito pouco tempo atrás, seguia um padrão de tradição oral, ou seja, a técnica passava de pai para filho, na própria vinícola, tal como herdada dos avós europeus. Não havia enólogos no Brasil.
Acreditava-se, e firmemente, que a uva devia ser colhida no verão, tal como na Europa. Só que na Europa, o verão, nos arredores do paralelo 33, é seco e quente. Aqui é quente e úmido, inclusive na Serra Gaúcha.
Resultado: A uva colhida no verão brasileiro fica cheia de água, o teor de açúcar cai e, ao final do processo, se tem um vinho com pouco álcool, com os taninos diluídos, com baixa acidez, ou seja, uma porcaria de vinho.
Foi indo assim, até que alguém teve a ideia de inverter o ciclo vegetativo da uva vinífera europeia em São Paulo. Podar a uva duas vezes, uma em janeiro, e outra em agosto. A poda de agosto faz com que surjam os ramos produtivos. A poda de janeiro faz com que os brotos se formem em fevereiro, floresçam em março, para os cachos começarem a se formar em abril, para ser a uva colhida em junho ou julho.
Mas essa “pegada” não se aplica ao Rio Grande do Sul. O inverno de lá, além de úmido, é frio e escuro, o que diminui a fotossíntese e limita a maturação da uva. E não se aplica também ao Nordeste, dado o excesso de calor, a secura e a extrema luminosidade, que “queima” a uva.
Contudo, a manobra cai como uma luva para São Paulo. Aqui o inverno é similar ao verão europeu, quente e seco.
Após muitas pesquisas nas suas terras de São Roque, foi isso que Cláudio Góes, neto de uma linhagem centenária de vitivinicultores, percebeu.
Góes, sem abrir mão do vinho ruim, o que lhe garante sobrevivência, passou a investir pesadamente no cultivo de uvas europeias, notadamente as cepas Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc, ganhando com seus vinhos, medalhas de ouro, não aqui em São Paulo, mas em degustações às cegas, onde não se sabe a origem do vinho, em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul...
No momento, são muitos os investidores para que São Paulo seja o maior consumidor nacional e produtor de vinhos finos tintos.
Neste empenho se encontram lado a lado a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), além de sindicatos patronais e secretarias de governo – o que incluiu até a redução pela metade do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre o vinho paulista desde 2007.
O Instituto Federal de São Paulo, campus de São Roque, abriu o primeiro e único curso de Viticultura e Enologia em território paulista.
Por seu lado, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) cartografou e mapeou quatro regiões paulistas que podem produzir vinhos superiores a todos os demais de origem nacional, delimitando “polígono vitivinícola paulista”, que inclui São Roque, sendo que Jundiaí ficaria responsável por vinhos mais leves e a região de Franca a São Carlos produziria a variedade Shiraz, enquanto a de Jales produziria cepas de Sauvignon Blanc, indicada para espumantes brancos.
Outra região mapeada foi designada “terras altas paulistas” e, otimizando a alternância entre o calor e o frio da Serra da Mantiqueira, a poder se produzir excelentes cepas de Cabernet Sauvignon.
Ademais, não se usam mais leveduras indígenas (selvagens) para fermentar a uva, e sim as importadas, selecionadas, que permitem que se module o desenho do vinho que se quer obter.
Porém, a escassa produção de uvas é um dos grandes gargalos para a produção de vinhos finos, o que será superado com uma década de crescimento das plantações paulistas, destacando-se, neste tocante, a cidade de São Miguel Arcanjo, na região de Itapetininga.
São Roque desperta de longo sono vinífero. Investimentos no enoturismo são necessários e uma política séria e capaz de turismo será capaz de chamar para o bom vinho de São Roque, milhares e milhares de turistas, provindos da maior cidade da América Latina e uma das maiores do mundo, distantes apenas 59 quilômetros - São Paulo!
São Roque tem topografia e um jeitão de Piemonte, é lindinha, e foi a terra de escolha de Mário de Andrade para passar os seus fins de semana.
Eu, particularmente, amo São Roque. A cidade vem se empenhando em produzir chocolates (a fábrica da Hersheys está lá), uma miríade de produtos artesanais à base da alcachofra, e várias adegas e excelentes restaurantes à beira da lindíssima Estrada do Vinho.
Em janeiro e fevereiro, a atração é a colheita da uva e a tradicional pisa no lagar para a fabricação do vinho, quando o município chega a atrair três mil visitantes em um fim-de-semana.
A Quinta do Olivardo oferece o ritual do “Vinho dos Mortos”, tradição portuguesa de enterrar as garrafas de vinho para resgatá-las em fevereiro, memorando o que os portugueses fizeram para defender seus vinhos diante das invasões napoleônicas.
Todo este esforço quer reverter o consumo de vinhos no país, que é de apenas 1,8 litro por ano, enquanto no Chile esse número sobre para 14,7 litros, e na Argentina, em média, 31,6 litros por argentino, ao ano.
E que ninguém subestime São Paulo. Em uma década, seremos os maiores produtores de vinhos finos, de grande qualidade tecnológica e sensorial, sendo que já somos os maiores consumidores e mercado.
São Paulo é São Paulo...
*O autor é advogado, médico e dentista. Foi candidato a vereador em São Paulo, membro do MSPI e da Frente Bandeirante
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